14.2.07

U M A E S T É T I C A D O V I S Í V E L
MARIA JOÃO FERNANDES


"À travers lês siècles, l'ímage est restée la même. Elle nous enseigne qu'il faut chercher au-delà dês evidences trop manifestes."
René Huyghe - Beauté in: Dialogue Avec le Visible

A mesure que l'oeuvre d'art se réalise et qu'elle poursuít sans perfection, elle s'affirme comme une organisation plastique, oui, mais en même temps, comme une manífestation de l'être."
René Huyghe - Du visible à l'invisible in: Dialogue Avec le Visible.

A pintura de Dario Alves é inquietante, apesar do colorido silêncio que emana da tranquilidade das suas imagens. Uma tranquilidade aparente que reúne numa fórmula única o gosto da pintura-pintura na tradição dos grandes clássicos, como Ingres que admira, um humor magritteano que se revela no jogo com os códigos da imagem e na sua subversão, um amor à estética dos objectos e do quotidiano, que tem levado a que o aproximem da Arte Pop, uma relação evidente com os enquadramentos do cinema e da fotografia, sobretudo os "close-up" na actual exposição e um rigor de representação, o assumir do seu poder de atracção, que pode filiar-se na sua formação de artista gráfico e na presença invasora da publicidade nos nossos dias. A sua arte devolve-nos não só a pele encantada das aparências, mas a sua magia intraduzível.
Dario Alves não é catalogável e talvez seja essa uma das razões da inquietação que nos comunica a aparente quietude das suas imagens, uma das razões também da sua originalidade que valoriza, como aquilo que considera a "raridade", associando-a a uma obra única e não pautada por critérios de quantidade. Cada obra de Dario Alves representa o exercício de mestria de um virtuoso, domina como Ingres, duas linguagens, a da imagem como corpo do visível e a da música secreta que se desprende do seu corpo invisível. Ingres dava forma à metáfora através do seu violino, Dario Alves envolve uma ressonância interior e musical na sua expressão.
A partir da divulgação da fotografia em meados do século dezanove e da primeira subversão dos códigos de representação tradicionais, que o impressionismo revelou, os artistas preocuparam-se em distinguir territórios do olhar: os da fotografia e os da pintura. As vanguardas do nício do século XX, a abstracção, todos os informalismos, a nova figuração e os conceptualismos contemporâneos radicam em parte nesta necessidade. Um movimento oposto no sentido do regresso ao real e ao mundo das aparências, manifesta-se nas representações meio lúdicas meio críticas da Arte-Pop nos anos cinquenta e sessenta e nos híper-realismos surgidos nos anos sessenta que pretendem mesmo ir mais longe do que a fotografia no domínio e na decifração dos códigos do real.
A história de arte das últimas décadas está feita de contaminações entre a pintura e a fotografia, traduzindo na actualidade um diálogo entre as artes típico de um final de século, a criação de um novo estatuto para a imagem, onde já não é possível separar a representação fotográfica e a expressão pictórica, no entanto perfeitamente demarcadas.
Dario Alves compraz-se em jogar com uma saborosa e voluntária confusão de códigos, onde o olhar do artista se torna tanto mais sedutor, quanto se apoia numa fascinação primeira, capturada e enriquecida com uma interioridade que a imagem do visível fielmente evocada e só ela é capaz de manifestar. O percurso, aqui, não é, como o dos surrealistas, do inconsciente para o consciente que dá forma às imagens, mas do consciente que o olhar desperta, para as suas raízes inconscientes, que orientam mesmo assim a eleição do motivo e o seu tratamento. De facto é difícil saber o que vem primeiro, que obscuras motivações presidem ao acto criador. Certo é que toda esta pintura se apoia numa estética do visível, que o mundo aqui representado é o quotidiano que nos é familiar, e que a impressão de estranheza vem de uma sobrecarga de sentido, de um "mais", que o artista acrescenta à imagem e que é seu património, mas que o olhar comum deixa escapar.
Qual é então o segredo dessa visibilidade que faz todo o encanto do universo do artista? A actual exposição que reúne um conjunto de obras da sua colecção, dos anos 70 aos anos 90 e uma série de pinturas recentes, ajuda-nos certamente a responder a esta questão. A pose hierática dos modelos femininos, a alquimia do modelado da cor absorvendo a luz, as figuras perfeitamente desenhadas sobre fundos monocromáticos, correspondem não a um ideal de beleza mas à própria configuração da beleza que se transforma numa metáfora viva, na imagem do corpo da mulher. A perfeição é aliás acentuada pela esfera que o fruto representa em algumas imagens.
A beleza está na perfeição, na proporção, no equilíbrio das formas, no acetinado da carne do modelo, na regularidade geométrica do pilar onde se apoia, nesse outro referente que aponta já para a acção do homem e a sua transformação da matéria. Embora não se trate aqui da matéria, mas apenas e não mais do que do visível e seus equívocos, do esplendor dos seus equívocos. Um visível que desvenda a oculta emanação dos objectos, que é corpo e espírito, espírito do corpo, corpo do espírito. Talvez estes trocadilhos se ocultem no olhar sorridente da rapariga (Prova de Agregação - 1982), no seu sorriso impudente de Mona Lisa jovem ou na melancolia que encarna a absoluta inocência, a pureza sem mácula da menina (Menina num Fundo Cinzento -1987). A alusão à fotografia que se acrescenta e sobrepõe à imagem da pintura, agudiza o enigma. Ambas as representações se propõem traduzir o visível e ambas não são mais do que aproximações possíveis de um objecto que se expõe na sua nudez cristalina e assim também e ao mesmo tempo se furta a poética do visível, onde Dario Alves desenvolve sem fim os seus exercícios sobre o invisível.
in:catálogo Dario Alves/trabalhos de casa/Árvore/1996