29.5.07

Tomo a coisa como um jogo

De um momento para o outro sou uma mulher parada, uma mulher sozinha, de mãos demasiado magras, parada na sala-de-estar: olho-me como se fosse outra pessoa, uma pessoa (digamos assim) objectiva, de (digamos assim) olhos frios, e vejo-me aqui perdida, parada, interrompendo o gesto de pegar na colher, e forçando-me a reparar nos objectos, nos seus pormenores, sombra, peso, tamanho, irregularidades, para não cair, forçando-me a mirar cada objecto, a colher os frutos o frasco os cigarros, com uma atenção que me segure, que não me deixe ir abaixo, uma atenção (os olhos abertos fingindo espanto) que não me deixe ser tomada por esta dor, esta angústia, isto que não tem nome, isto que vem sem aviso como as más notícias, aquele telefonema em que disseste acabou tudo, assim de um momento para o outro: de um momento para o outro sou uma mulher bonita, de saia curta, a sair de um automóvel e ninguém me olha, nenhum homem português se vira para espreitar a perna (o tornozelo nu) que ponho fora antes de me levantar na rua e atravessar o passeio e entrar em casa e desaparecer, de um momento para o outro ninguém me olha ou então sou eu que já não noto, desde que te foste embora é-me difícil ser olhada, é-me difícil este corpo inútil que não pára de envelhecer, e talvez por isso fuja para o elevador, para o sexto andar, e me feche sozinha em casa e gaste o tempo no apartamento enorme (por mais bibelôs), escuro (por mais candeeiros), silencioso (por mais música) a desarrumar e a arrumar tralhas, a fazer seja o que for, não interessa, para não cair em lembranças: momentos tão simples como tu em frente ao espelho do ol de entrada a ensinares-me os novos nós de gravata inventados pelos americanos, ou a escreveres sentado na mesinha ao pé da janela e de repente parando, tirando os óculos, pousando-os na mesa, sorrindo, ou à noite na luz branca da cozinha a comeres à socapa a última maçã do cesto: para não me desmanchar contra as lembranças tomo a coisa como um jogo, isto fica melhor aqui, aquilo é melhor ir para ali, o lápis na bordinha da mesa, mesmo antes de cair, a cebola na bancada debaixo da lâmpada como uma obra de arte, a bolacha no centro geométrico do prato, para não desatar aos berros ou a chorar (para não me atirar da janela) tomo a coisa como um jogo, a vida, mudar os objectos de sítio uma e outra e outra vez até o corpo se cansar e eu ser tomada pelo sono: quando foste embora o que me salvou foi a bondade dos gestos quotidianos, cortar o pão lavar a loiça escamar o peixe regar as flores arrumar os objectos, cada um no seu lugar, com muito cuidado, muita (digamos assim) concentração, num silêncio (digamos assim) diferente, ligeiramente diferente consoante se trate de uma bola ou de um biscoito, por exemplo: uma mulher de meia-idade sozinha na sala-de-estar, as mãos e os olhos demasiado magros, uma mulher de meia-idade de pé na sala-de-estar, parada, sem uma palavra, interrompida a meio de um movimento sem saber o que fazer a uma colher pequena, pequenina, muito bonita, e eu a olhá-la.
Jacinto Lucas Pires/2002
in: catálogo Dario Alves/ Galeria Canvas/ Porto/ Janeiro 2002