24.5.10

A pintura de Dario Alves / uma tranquilidade enganadora

O quadro com um banco pertence a um Banco;
No quadro da rapariga com meias pretas o que se vê é um morango;
Na menina em papel amarrotado não há mais nada para ver;
O quadro com açucenas tem um carimbo;
O da natureza morta ainda está para morrer;
A menina com etiqueta estaria melhor como etiqueta com menina.

A pintura de Dario Alves é um jogo de coincidências e de contradições, de afirmações e de paradoxos, de incongruências e de absurdos. A literalidade com que tudo se apresenta é enganadora e a sua quietude também. É preciso atravessar essa barreira de serenidade para identificar o jogo, invertendo uma famosa proposição literária como segue: “Sobre a verdade da fantasia, o manto diáfano da realidade”.

O realismo em pintura é comummente entendido como recurso a um tecnicismo virtuoso que haveria de resultar numa pintura lisa, seca, sem sinais de individualidade, isenta de modismos e de idiossincrasias, na sua pretendida colagem à realidade. O realismo seria um modo de pintar que não admitiria qualquer estilo. Ora, nem essa pintura é possível – porque ela é sempre feita de pensamento e mão humana –, nem essa realidade se vislumbra – porque mesmo os objectos do quotidiano e as situações mais banais são investidas de significado, de interesse e de sensibilidade. A escolha dos motivos e das estratégias de apresentação nega qualquer possibilidade a um tal realismo neutro e despojado de personalidade.
A pintura de Dario Alves é, portanto, de um realismo que o não é.
O pintor afirma-se fascinado pelos objectos e manifesta na sua observação criteriosa e no seu sentido crítico, a faceta do designer. Os objectos existem à escala humana, são coisas que podemos manusear e, quando isso não acontece, o pintor manipula-os até os trazer para junto da mão e do olhar. É assim que surgem na sua obra os objectos arquitectónicos, a Torre dos Clérigos, por exemplo, nessa familiaridade de coisa táctil, em moldura de pousar sobre a mesa. O gosto pela miniatura associa-se aos temas dominantes e ao sentido de proximidade que requerem – a pintura é para ver ao perto. Por isso, ela instaura um conjunto de procedimentos exigidos ao espectador – aproximação, observação, detalhe – cumpridos num ritual de silêncio que nada tem de dramático, pelo contrário, apela a uma calma que o nosso sorriso não chega a quebrar.
Nestas circunstâncias, o pintor introduz ainda: ponderação do formato, do suporte, da “embalagem” que a pintura evidencia; atenção ao centro e às margens, ao espaço e aos limites, aos cantos, ao inferior e ao superior; cuidado na integração do texto e até dos elementos data e assinatura; intuição de um espaço próprio sobre o qual, e dentro do qual, actua. Sendo alguém que conhece bem os meios da composição visual e as predisposições mentais e perceptivas de quem a observa, Dario Alves compraz-se em contrariar os hábitos instalados. Daí que, por vezes, o que parecia mais importante torna-se secundário; o que se afigurava central é remetido para um lugar subalterno; o que seria acessório adquire o protagonismo (Frasco com pílulas, Quadro com carimbo) e o dado ausente torna-se presente (Quadro desligado).
Os anos 60 e 70 trouxeram ao campo da pintura os dispositivos e os exteriores olhares exteriores à obra e abordaram enfaticamente molduras, etiquetas, legendas, carimbos, toda uma série de elementos vistos, até então, como acrescentos do sistema da arte à criação artística, com o objectivo de a fazer circular e de a divulgar, e que agora passavam a integrar a produção do artista. Este antecipava-se, assim, à crítica, ao mercado e às instâncias nas quais a obra haveria de se legitimar enquanto tal. Esta atitude teve como consequências o desfazer da ilusão (já não era, aliás, a primeira vez que tal se verificava). Ao reflectir abertamente sobre a pintura e ao expor os mecanismos da sua apresentação, esclarecia-se uma dupla contradição: por um lado, a pintura como ilusão que nos leva a acreditar naquilo que representa como algo real; por outro lado, a pintura como artifício que nos leva a reconhecer a montagem que lhe é inerente e a desacreditar da realidade da representação.
Remissões, referências e alusões aos códigos e aos dispositivos da pintura são sistemáticas na obra de Dario Alves, menos como afirmação pomposa e erudita, do que como “piscar de olho” (a expressão é sua) ao mundo em volta. Um piscar de olho que dura apenas o tempo de detectar a expressividade das pequenas inconsistências, dos acasos produtivos e dos encontros inesperados.
É interessante notar como na pintura da agregação apresentada na Escola Superior de Belas Artes do Porto, em 1982, se apercebe como a prova foi utilizada pelo artista para provar (e aqui a redundância é obrigatória) a função da pintura, para fazer uma síntese de quanto realizara e haveria de realizar. Aí encontram-se os suportes e os instrumentos de trabalho, os motivos e as técnicas, os objectos e o modelo feminino, os jogos de escala. Já aí, a mulher surge como a criatura que se movimenta mais livremente em tais superfícies, apoia-se onde lhe apetece, senta-se numa moldura, afasta-se para o lado ou inquire o pintor (que nós não vemos).
A menção das técnicas utilizadas – Recortada; Desenho pintado, Café bem pintado; a alusão permanente às molduras e aos enquadramentos, sob a forma de linhas, cordas, cortinas e estores, panos de renda, fitas e fios, zona inferior marcada como lambrim; a evocação dos modelos de outrora na colocação de uma natureza morta (que assim adquire o ar de natureza mesmo morta); o formato de tríptico e a imitação de retratos renascentistas (Retrato de uma senhora da família Talbot sem chapéu, sem colar e sem vestido) exemplificam as estratégias mais frequentes no seu trabalho. A utilização insistente da nomenclatura crítica também é relevante. Os títulos são, às vezes, Cebola, Óculos, Um pé, Camisa ou Quadro com... rapariga a despir a camisa. Esta palavra quadro, na simplicidade daquilo que designa, é suficiente para quebrar a fantasia da aparência e lembrar a dissimulação da pintura inscrita na superfície de tela emoldurada. Os jogos de palavras são tão importantes como os das imagens e lembram-nos que os dois registos são inseparáveis (Pedaço de mulher e Sobre a Ceia). O modo como a presença feminina surge aponta ainda para o divertimento do artista à volta de remissões de remissões e quadros dentro de quadros. A figura sobre cartão reaparece no rótulo do frasco, dentro do frasco, depois numa etiqueta. Podemos falar de figura feminina, outras vezes de mulher, de stripper, outras ainda de modelo, finalmente de ícones publicitários e de mulher objecto.
A mistura de códigos – entre a pintura, a publicidade, o cartaz, a fotografia e toda a comunicação visual – é também permanente. É assumida na falsa colagem Memória dos anos 70, surge na forma metafórica no bem-humorado L. de Vinci & Dario Alves Ldª onde se transforma uma linhagem artística em sociedade comercial; reaparece no Modelo 1973 à venda nas casas da especialidade que assimila o modelo feminino ao produto comercial ou em Academia e fotografia.
O acabamento perfeito, a composição inexcedível, o equilíbrio irrepreensível e a limpidez da organização estão ao serviço do simulacro, obrigando-nos a oscilar entre a pintura, aquilo que a precede e aquilo que a segue.

Dario Alves vive rodeado de objectos e de imagens; vê o mundo como imagem porque o seu olhar dirige-se tanto a esse mundo, como à sua representação, consciente de que ela se faz num consenso cultural de convenções e de regras. O seu realismo é, ao mesmo tempo, um realismo de admiração e de fidelidade aos objectos e um realismo de celebração e de fidelidade à pintura, à sua matéria e aos seus meios. Por isso é um realismo de atelier e de redoma – como o próprio o definiu.
Por vezes, o pintor parece fazer parte desse universo e apresentar pacificamente a sua pintura; outras vezes, prefere distanciar-se dele e desmontá-lo, apreciá-lo criticamente e dá-lo, armadilhado, a um observador desprevenido. Em ambos os momentos, o mundo apenas existe enquanto mundo pintado e, embora ambíguas e provocatórias, são tranquilas as conversas estabelecidas entre a realidade, o artista e o observador. Conversas de quem está bem consigo e com o mundo.

Post scriptum

Para agir num registo idêntico ao de Dario Alves e à sua meta-pintura, pergunto-me, em jeito de meta-texto o que falta a estas linhas para garantir uma leitura eficaz da obra em causa. Porventura, atribuir um lugar maior aos pretextos que originaram cada uma das peças ou das séries apresentadas. É que esta pintura radica num sem número de episódios e de narrativas que lhe permitem estar rés à vida e, ao mesmo tempo, não se esgotar na análise e na crítica dos seus pressupostos. Questionei o pintor sobre dois quadros e imediatamente se revelaram duas histórias, uma de amizade e de aniversário, outra de comboios e de viagens. Registá-las aqui seria bem menos interessante do que descobri-las numa conversa. Mais uma vez, uma conversa de quem está bem consigo e com o mundo.

Laura Castro
in: Catálogo Dario Alves/ Museu do Douro/Régua/2010