9.2.07

Se há uma obra na pintura portuguesa contemporânea onde tudo parece repetir-se essa obra é a de Dario Alves. No seu proceder com a matéria e, como consequência, nos resultados que com ela consegue, nas soluções formais apresentadas — e podem relembrar-se aqui constâncias tão nítidas como esses espaços dentro de outros espaços, as volumetrias estabelecidas com um rigor próximo das presenças tácteis, as cores passivas com notações contrastantes pela carga energética que incluem, e de que uma função activa se desprende peremptoriamente, uma linha contorno que é sempre um traço onde o desenho é um valor e a caligrafia outro, os seus leit-motiv, que convertem a sua iconografia numa iconografia inconfundível, como o demonstram as suas figurações femininas, as representações objectivas, e é lícito, creio-o, destacar neste aspecto o seu recurso à representação de objectos do pintor, os úteis de atelier. Mas outros segmentos do "sistema de objectos" são também escolhidos. O que não impede que na diferença dos motivos se organizem em conjuntos, em textos que na sua pluralidade, simultânea ou diacrónica, exibem uma coerência fundamental. Dizia que se há uma pintura que parece redundante em Dario Alves tal redundância é mais aparente do que real. Não porque não seja possível verificar constâncias, e até serializações, num sentido que não é sinónimo de módulos ou "patterns" mas no de um "ratio" que persiste, legitimando, ao longo da sua obra. E lado a lado, e em íntima fusão, com variantes, enriquecimentos, transgressões. Transgressões não de uma gramaticalidade que é um caso de definição bem patente mas que não pode, por tal, ser entendida como um estereotipo nem como um caso fechado. É antes um caso evolutivo, premeditada e metodicamente construído — a pintura de Dario Alves é um construtivismo muito sui-generis — e de onde o acaso é um factor banido. A subtileza que preside à integração das variantes, formais e iconográficas, não pode impedir que se reconheça a sua existência, por um lado, e a importância do seu significado, por outro. Só a desatenção pode irreconhecê-los.
Disto são exemplar comprovação os seus desenhos mais recentes. Onde, e para além do pretexto, do motivo, se afirma categoricamente essa dimensão da pintura que é a verticalidade. Como posicionamento privilegiado da sua relação com o público fruidor. O que é uma formulação plástica sobre o quadro como um facto pendurado. E um signo ostensivo de tal reflexão é essa esfera "suspensa" por um fio, intensificado aliás pela sugestão de movimento pendular que se observa. Signo também importante, dentro desta ordem de ideias, é a representação do papel, por outra parte assumindo a realidade física bidimensional do suporte, que se configura como pondo em causa uma aderência estrita, mas obriga a recordar não só essa condição como a circunstância em que comparece. Exposto, numa parede. Ao que se acresce a função dos fundos que são fundos meramente pictóricos.
Nada do que foi dito o foi com o objectivo de ignorar a componente mimética da pintura de Dario Alves que é inegável. O propósito, que a sua obra impõe, é fazer reparar em aspectos que coexistindo com os mais obviamente aparenciais não deixam de os ultrapassar e converter esta pintura numa pintura que sendo representativa é, sobretudo, significativa. As suas significações ultrapassam a mera "literalidade" e surgem investidas de um carácter problemático e metalinguístico. Não se instituem como uma relação com fragmentos do real, natural ou artificial, mas com esse real que é a pintura: processo, fazer e objecto.
Uma pintura que considera o quadro enquanto quadro e reflecte sobre a imagem dentro da imagem, que inclui signos inequívocos do afazer pictórico e recorda as relações entre obra e fruidor, que patenteia flagrantemente uma estética do acabado que é um autêntico manifesto em favor do ofício, não é uma pintura frívola, como por vezes tem sido referida, mas uma pintura profundamente séria do ponto de vista pictórico.

JOAQUIM MATOS CHAVES / ABRIL 1985