9.2.07

Essência e Contingência


Ao contrário do que vem sendo afirmado, e por vezes com um ênfase a-histórico, a ruptura no domínio das artes plásticas é um acontecimento, um conjunto de acontecimentos, ocorrido na primeira metade do séc. XX. Com excepção dessa revolução verificada no fim dos anos 50 e que privilegiou um tipo de obra que não consistia em objectos mas em acções, a arte posterior é uma arte onde prevalece a moderação. Simplesmente porque nela prevalece uma continuidade, continuidade que por ser nova e outra o não é menos.
A consciência, ou a intuição, desta realidade "está" na obra de muitos artistas e nos escritos de não menos analistas. E a não consciência, como a não intuição, na de muitos outros. Certas originalidades, algumas estridências e proclamações, são hoje, contumazmente, sinal de ignorância da condição histórica da criação e da arte e presunção de uma condição adâmica, inaugural. Sem o "pecado" de uma linhagem, tal a diferença reclamada. Muitas obras convencem-se de que se constituíram num ano zero, muitos analistas contribuem para tão erróneo convencimento através de outros exercícios que são também convencimento.
Certamente que uma rigorosa compreensão de conceitos como o expressado por Ortega y Gasset com o "eu sou eu e a minha circunstância" ou por Lucien Goldmann na reflexão sobre "consciência possível" garantiriam uma maior prudência e um mais acusado sentido de perspectiva. Não será este o momento indicado para expor, ou glosar, uma e outra digressão filosófica mas é momento oportuno para pretender a atenção que justificam. A noção das suas implicações evitaria muita poluição visual e também muita poluição verbal, oral ou escrita. A que não é alheia uma crítica que assente a sua prática com juízos de valor que são meras adjectivações e esquece que a sua função é uma função de esclarecimento, por enquanto necessária. Esclarecimento que exige mais do que adjectivos, exige conjunções. Crítica que, sob o risco de deixar de o ser, deve permanecer dentro dos limites da heurística e da hermenêutica, deve saber delimitar com precisão as fronteiras entre interpretação e atribuição. Sem o que perde licitude epistemológica. Que não lhe é conferida nem pela maior astúcia estratégica na disposição das palavras nem pela energia persuasiva que patenteie.
Vêm as palavras anteriores a propósito, apesar do aparente despropósito em que parecem incorrer, da pintura e do desenho de Dario Alves que, noutras ocasiões, tive já a oportunidade de considerar tranquilamente revolucionária.
Isto é, como um caso de serena modernidade. Repetir as razões aduzidas seria incluir neste prefácio outros prefácios a exposições suas pelo que me atrevo a permissão de remeter os interessados para a leitura dos textos que incluem tais razões.
Diga-se a esse respeito apenas que os valores inequivocamente expressos como o carácter de metalinguagem que exibem as suas imagens dentro da imagem ou, ainda, o emprego da utensilagem de pintor ou, também, o recurso a procedimentos que convertem suportes em formas e, até, a integração de elementos estranhos, por ser outra a sua natureza, à lógica do enunciado, são suficientes para manterem a sintonia desta obra com alguns dos valores caros à modernidade. Modernidade que, escreveu-se antes, é serena porque permanece, consciente ou intuitivamente?, nos limites de uma extrema exigência oficinal e que tal exigência oficinal o leva a resolver as suas textualizações de acordo com um saber que a tradição também tinha por seu. Mas essa serenidade não impede uma profunda, e não aparencial, modernidade. Pelos índices de problematização, desafio e provocação que comporta, e que vai desde o desenho no corpo da obra um "pinte você mesmo" ao incluir, por processo análogo, de um Dario Vinci e Cª. Que inclui igualmente a comparência de representações que se questionam como tal. Representações de representações, como no aproveitamento novo dado à Gioconda ou representações que deixam patente que é de representação que se trata, estabelecendo a solução de continuidade que a pintura moderna, por um conceptualismo de que não prescinde, pressupõe. Tal conceptualismo adquire, com frequência, em Dario Alves uma feição de ironia que, como disse Kíerkegaard, é um certo modo de distância. Distância que com a solução de continuidade antes mencionada aproxima esta pintura de uma pintura pintura, no sentido da sua acepção lógico-icónica. E que a aproxima da obra desse pintor que foi, fazendo da representação mimética e do signo icónico uma das mais fascinantes aventuras da dúvida e do cepticismo representativo, que foi, dizia, René Magritte. A relação parece legítima embora em Dario Alves não se verifique nem a sistematicidade nem a variedade do pintor belga cuja leitura surrealista vem sendo urgentemente rectificada.
Contudo um outro significado cobra cada vez maior importância. Presente desde o início como valor nuclear da sua poética essa importância acrescenta-se porque ele é cada vez mais um valor diferencial. Num panorama onde as soluções "bad" predominam, em sentido estrito ou lato, e onde o culto do inacabado, após ter adquirido direito de cidade e com uma legitimidade que é incontestável, procura tornar-se avassalador. Onde também o formato gigantesco e o colossalismo das formas fazem do impacto imediato um argumento profundo e que na realidade é, muitas vezes, apenas um fácil efeito retineano. Onde certos simplismos esquemáticos adquirem o relevo e o protagonismo de um "non plus ultra" de vigência mensal ou anual, consumidos pela voracidade de quem está sempre à espera de sensações inéditas e que de sacerdotes se tornam, com espantosa facilidade, nos detractores ou na amnésia, numa ânsia de "épater" e surpreender quem já está "bacteriologicamente" imune a tais incidentes. Num panorama assim, referia, a preocupação pelo apuro no redigir, pelo cuidado posto no tratamento dos materiais, pelo rigor que impõe à construção e sobretudo, pela necessidade de uma higiene formal, Dario Alves distingue-se com a nitidez dum estilo que não é acidental nem circunstancial, epifenomérico, mas uma coerência feita de constantes e mutações. Onde coexistem essência e contingência.
Como se num mundo onde se faz o culto do desperdício se apareça lavado. O que é, convenha-se, ao mesmo tempo uma humildade e uma resistência. O que é, reconheça-se ainda, contestatário e, também, factor de incomodidade. De fácil, superficialmente fácil decifração ocular, a pintura de Dario Alves não é uma pintura submissa nem uma pintura pacífica. O seu isolamento é, seguramente, uma consequência de desafiar a tradição académica, presente em muitos subconscientes, e de desafiar pretensas contestações. E de fazê-lo sem estridências. Figurando por um lado e por outro regozijando-se num afazer sabedor. O espectáculo aqui acontece unicamente, sobre o suporte.

JOAQUIM MATOS CHAVES / Março 1986